Para José
Márcio Penido
Let me take you down
‘cause I’m going to strawberryfields
nothíng is real, and nothing to get hung about
strawberryfieldsforever
Lennon & McCartney: “Strawberry fields forever
PreIúdio
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali
e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de.
Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são
ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas éofinal-que-importa. E a
cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado
no fundo escuro de alguma gaveta.
Allegro Agitato
Pois o senhor está em excelente forma, a voz elegante do
médico, têmporas grisalhas como um coadjuvante de filme americano, vestido de
bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na medida justa
entre o desalinho e a descontração. Não há nada errado com o seu coração nem
com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro
cigarro, desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é
no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece
em check-up algum.
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar
a tecer considerações sócio-político-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento
da Hipocondria Motivada Pela Paranóia dos Grande Centros Urbanos, cara bem
barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa vez disse que os médicos
são os maiores tarados (talvez pela intimidade constante com a carne humana,
considerou), e este? Rápido, analisou: no máximo chupar uma boceta, praticar-sexo-oral,
como diria depois, escovando meticuloso suas próteses perfeitas, naturalmente
que se o senhor pudesse diminuir o cigarro sempre é bom, muito leite, fervido,
é claro, para evitar os coliformes, ar puro, um pouco de exercício, cooper,
quem sabe, mais pensando no futuro do que em termos imediatos, claro. Mas se o
futuro, doutor, é um inevitável finalmente alguém apertou o botão e o cogumelo
metálico arrancando nossas peles vivas, bateu com cuidado o cigarro no
cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos de metal, e tudo no consultório
era metal cromado, fórmica, acrílico, anti-séptico, im-po-lu-to, assim o
próprio médico, não ousando além do bege. Na parede a natureza-morta com secas
uvas brancas, pêras pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia
escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango
sangrento. Um morango mofado - e este gosto, senhor, sempre presente em minha
boca?
Azia, má digestão, sorriso complacente de dentes no
mínimo trinta por cento autênticos (e o que fazer, afinal? dançar um tango
argentino, ou seria cantar? cantarolou calado assim “quiero emborrachar mi
corazón para olvidar um toco amor que más que amor fue una traición’ tinha
versos à espreita, adequados a qualquer situação, essa uma vantagem secreta
sobre os outros, mas tão secreta que era também uma desvantagem, entende? nem
eu, versos emboscados da nossa mais fina lira, tangos argentinos e rocks
dilacerantes, com ênfase nos solos de guitarra). Um tranqüilizante levinho
levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar,
após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranqüilo,
sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs
taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido
entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado,
demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido
sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça
para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e
memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. Suspirou, suspirava muito
ultimamente, apanhou a receita, assinou um cheque com fundos, naturalmente, e
saiu antes de ouvir um delicado porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem.
Adagio sostenuto
Quando acordou, o sol já não batia no terraço, o que
trocado em miúdos significava algo assim como mais-de-duas-da-tarde. Tinha
tomado três comprimidos, um pela manhã, outro pelo almoço, outro antes de
dormir, só que juntos - e o gosto persistia na boca. Strawberry, pensou,
e quis então como antigamente ouvir outra vez os Beatles, mas ainda na cama
teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos, e onde andariam agora,
perdidos entre tantas simones e donnas summers, tanto mas tanto tempo, nem
gostava mais de maconha. Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo
mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a
empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado
cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma
dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava.
Precisava inventar um dia inteiro ou dois, porque amanhã é domingo e segunda-feira
ninguém sabe o quê.
Acendeu um cigarro, assim em jejum
lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado,
mas o fígado continuaria existindo sob as tais fibras ou seria substituído por?
Ninguém saberia explicar, cuecas sintéticas dessas que dão pruridos &
impotência jogadas sobre o tapete, uma grana, imitação perfeita de persa. O
telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a
página em branco após a vírgula, ele estendeu a mão, tinha dedos até bonitos
ele, juntas nodosas revelando angústia & sensibilidade, como diria Alice,
mas Alice foi embora faz tempo, a cadela que eu até comia direitinho,
estimulando o clitóris comme ilfaut, não é assim que se diz que se faz
que se. O telefone tocou uma vez mais, e como se diz nesses casos, mais uma e
mais outra e outra mais, enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio
libertando uma onda desgrenhada de violinos, Wagner, supôs, que tinha sua
cultura, sua leitura, valquírias, nazismos, dachaus, judeus, e com a outra
acariciava o pau começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus,
davis.
O telefone parou, o telefone não fazia nenhum som
especial ao parar, mas deveria arfar, gemer quando entrasse fundo, duro e
quente, judeuzinho de merda, deve estar metido naquele kibutz no meio da areia
plantando trigo, não, trigo acho que não, é muito seco, azeitonas quem sabe,
milho talvez, a cabeça quente do pau vibrava na palma da mão, foi no que deu
ficar trocando livrinho de Camus por Anna Seghers, pervitin por pambenil, tesão
se resolve é na cama, não emprestando livro nem apresentando droga, anote,
aprenda, mas agora é troppo tarde, tudo já passou e minha vida não passa
de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.
Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o
tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão
todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o
ácido em todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos
começando a brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava. De súbito lisérgico
no meio de uma frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de
vomitar agora as quinze miligramas leves leves. Alice abria as coxas onde a
penugem se adensava em pêlos ruivos, depois gemia gostoso, calor molhado lá
dentro. Neurônios arrebentados, tem um certo número sobrando, depois vão
morrendo, não se recompõem nunca mais, quantos me restarão, meu deus e a mão de
pêlos escuros de Davi acariciando as minhas veias até incharem, quase obscenas,
latejando azul-claro sob a pele. Sabe, cara, quando te aplico assim com a
agulha lá no fundo, às vezes chego a pensar que. Noites sem dormir e a luz do
dia esverdeando as caras pálidas e as peles secas desidratadas e as vozes
roucas de tanto falar e fumar e falar e fumar. Vomitou mais. Nojo, saudade. Sou
um publicitário bem-sucedido, macio, rodando nas nuvens, o Carvalho me disse
que rodando-nas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é um poeta,
enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas nuvens um dia,
agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga. Strawberryfields:
no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos
boiando, esverdeados pelo mofo.
Andante ostinato
Nem ontem nem amanhã, só existe agora, repetia Jack
Nicholson antes de ser morto a pauladas, enquanto ele espiava Davi jogado no
fundo do poço tão profundo que precisaria de uma escada para descer até lá,
evitando os escombros da cidadezinha que era ao mesmo tempo Kõln após a guerra
e o Passo da Guanxuma, com aquele lago no centro de onde sem parar partiam ou
chegavam barcos, nunca saberia, e não importa, Alice corria entre os ciprestes
do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava Alice, Alice, minha filha, quando
é que você vai se convencer que não está mais do outro lado do espelho, até
encontrar Billie Holiday em pé na escada entre paredes demolidas, aqueles
degraus subindo para o nada, com Billie no topo decepada, solta no espaço de
escombros repetindo e repetindo “you’ve changed, baby oh baby, you’ve changed
so much’ estendeu a mão para socorrer John Lennon mas quando abriu a boca
sangrenta, feito um vento preso numa caixa fugiu aquele horrível cheiro de
morangos guardados há muito tempo, como um vento vindo do mar, um mar anterior,
um mar quase infinito onde nenhuma gota é passado, nenhuma gota é futuro, tudo
presente imóvel e em ação contínua, o cheiro de maresia era o mesmo do hálito
da pantera biônica de cabelos dourados. Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana
junguiana reichiana rankiana rogeriana gestáltica. E mofo de morangos.
Gritaria. Mas acordou com o plim-plim eletrônico antes
sequer de abrir a boca. O vento fresco da madrugada embalava as cortinas
brancas feito velas de um barco encalhado, uma nau com todas as velas pandas,
não adianta chorar, Alice, já falei que é loucura, pára de bater essas malditas
carreiras, teu nariz vai acabar furando, melhor ser monja budista em Vitória do
Espírito Santo ou carmelita descalça em Calcutá ou a mais puta das putas na
putaqueapariu, não me olhe assim do fundo do poço, não me encham o saco com
esse plim-plim hipnótico, eu fico aqui, meu bem, entre escombros.
Desligou a televisão, saiu para o terraço de plantas
empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva dentro de
mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto nojento na
língua. O cheiro daquele único jasmim espalhado sobre os sete viadutos da
avenida mais central. Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado,
morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da
cintura para dentro - que diferença faz? Oficializar o já acontecido: perdi um
pedaço, tem tempo. E nem morri.
Minueto e rondó
Amanhecia. Não havia ninguém na rua.
Não, foi assim: debruçado no terraço, ele olhou primeiro
para cima - e viu que o azul do céu quase preto aqui e ali se fazia cinza cada
vez mais claro em direção ao horizonte, se houvesse horizonte, em todo caso
atrás dos últimos edifícios que eram, digamos, um sucedâneo de horizontes. E
amanhecia, concluiu então. Debruçado no terraço, ele olhou segundo para baixo -
e viu que na longa rua não havia rumores nem carros nem pessoas, só os sete
viadutos também desertos. Não havia ninguém na rua, concluiu ainda.
Debruçado no terraço, amanhecia.
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se
alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no
sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando
tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no
planeta? Sabia que não. E um outro de-dentro pensava também, se sobrepujando
mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não
era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando
natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco
batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar
ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse
lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer
coisa como - não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito - uma luz,
um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano
ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo.
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não
houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim
sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara,
mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam,
alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não
tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem
aditivos.
Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.
Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi
assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo,
foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um
instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de
costas contra o céu, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na
porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre
azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma.
Gótico, gemeu torcido, unindo as duas mãos no sexo, no ventre, no peito, no
rosto e elevando-as acima da cabeça.
O sol estava nascendo.
Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era
realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da
primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de
cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo
que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se
devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar
as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos
postas sobre o sexo.
Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro,
absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de
cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum
lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.
Achava que sim.
Que sim.
Sim.
Caio Fernando Abreu in Morangos Mofados
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