Porto, 22 de dezembro de 1979
Zézim,
Cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco
dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tua carta. Esses dias que tô aqui,
dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado,
Zézim, e quero te falar disso. Fica quieto e ouve, ou lê, você deve estar cheio
de vibrações adeliopradianas e, portanto, todo atento aos pequenos mistérios. É
carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma
xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão
pseudo-inteligente.
Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases
terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a
algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai
estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas
e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que
abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos.
Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a
você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem
aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta
peruano (será Vallejo? não estou certo):
“Caminante,
no hay camino. Pero elcamino se hace ai andar”.
Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará
porque você diz “Deus é minha última esperança”. Zézim, eu te quero tanto, não
me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece
cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem
procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada.
Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara /
círculo vicioso.
Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu
tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti,
sabia? E também Alian Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentemente parece um
pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto
pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.
Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não
faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama,
dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso
e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo.
Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a
maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora,
lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso.
O caminho é in, não off Você não vai encontrá-lo em Deus nem na
maconha, nem mudando para Nova York, nem.
Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever?
Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é
simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você
pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua
obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios.
Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário
não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não
enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se
interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade
básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você
continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel
de Britto Velho, “apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de
ouvir / diz tudo”. Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a
forma, não importa a “função social”, nem nada, não importa que, a princípio,
seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar
a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói,
dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz
que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da
auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é
fundamental na minha vida.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era
infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite
inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta
compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que
mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada,
desamada, incompreendida, com fama de “meio doida”. Porque se entregou
completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trap e
foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só
lá em Praga. Como Van
Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.
É esse tipo de criador que você quer ser? Então
entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você
quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque
suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior
festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um
tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.
Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas
tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças
mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no
mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais
idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do
inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie
procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um
tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece
ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação
do sub ou do inconsciente.
E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você
me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar
de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto,
mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito
pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira
essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento
decisivo é o dedo na garganta. E eu acho - e posso estar enganado - que é isso
que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca
a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na
hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da
gente.
Ou então vá fazer análise. Falo
sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa
que te cuide da cabeça ou/e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa
obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não
quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.
Pausa.
Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha,
acordava às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros,
fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia,
descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto.
Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era
um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem
que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados,
vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberryfieldsforever
pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego
enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem
câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em
velhos carnavais, e o sintoma - real - é um persistente gosto de
morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a
enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim
se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes
penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim,
entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal
transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela
manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta
versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio - porque sempre
posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas
coisas.
Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça
ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero,
vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso,
a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada - como estava, na Nova.
E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei
dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e
tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um,
chamado “Mulher em chamas”. Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito,
principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título
começou a me dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como.
Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de
Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia),
chamado “O recomeço do sonho”. Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura
emoção - porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta
década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus,
como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria
total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio.
Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele
formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga o que
acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo
dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer.
Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?
Aqui em casa tá bom. É sempre um
grande astral, não adianta eu criticar, o astral ótimo deles independe da
opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras,
Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar
com a sala. Hoje estava puta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi
reprovado novamente no colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de
Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas
incríveis pelo Menino Deus [Bairro de Porto Alegre onde Caio morou com os
pais.]. Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél
cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar. Povos outros, nem vi.
Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber.
Amanhã acho que vou lá.
Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo,
porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais
medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão
total na praia foram principalmente sadios.
Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante,
e uma foto muito engraçada de toda a redação - eu com cara de “não me
comprometam, não tenho nada a ver com isso”. Dê uma olhada. Falar nisso, Juan
passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo
de um ônibus e subindo noutro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou
fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma
vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que “desse certo”, caso
contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei
Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, “criação é coisa
sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É
misterioso, sagrado, maravilhoso.
Zézim, me dê notícias, muitas, e
rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo
ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os
documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora
de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo,
voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns
salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo
tempo.
Let me takeyou down
cause I’m going in strawberryfields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberryfields forever
strawberryfields forever
strawberryfields forever
Isso é o que
te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças
novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais
plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Me conta da
Adélia.
E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais
escuro, disque 05 12-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma
dureza dita. É porque te quero claro. Citando Guilherme Arantes, pra terminar:
“Eu quero te ver com saúde / sempre de bom humor / e de boa vontade”.
Um beijo do
Caio
PS - Abraço pro Neilo. Pra Ana Matos, e Nino também.
Caio Fernando Abreu in Morangos Mofados
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