À memória de Orlando Bernardes
Como você sabe, dirás feito um cego tateando, e dizer
assim, supondo um conhecimento prévio, faria quem sabe o coração do outro
adoçar um pouco até prosseguires, mas sem planejar, embora planejes há tanto
tempo, farás coisas como acender o abajur do canto depois de apagar a luz mais
forte no alto, criando um clima assim mais íntimo, mais acolhedor, que não haja
tensão alguma no ar, mesmo que previamente saibas do inevitável das palmas
molhadas de tuas mãos, do excesso de cigarros e qualquer coisa como um leve
tremor que, esperas, não transparecerá em tua voz. Mas dirás assim, por
exemplo, como você sabe, a gente, as pessoas infelizmente têm, temos, essa
coisa, as emoções, mas te deténs, infelizmente? o outro talvez perguntaria por
que infelizmente? então dirás rápido, para não te desviares demasiado do
que estabeleceste, qualquer coisa como seria tão bom se pudéssemos nos relacionar
sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente, insistirás,
infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos
- emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis não formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem e sobretudo, como dizias, emoções. Que nem se mostram. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás completamente desesperado, e teu único apoio será a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna absolutamente não verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.
- emoções. Meditarias: as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra. Há os níveis não formulados, camadas imperceptíveis, fantasias que nem sempre controlamos, expectativas que quase nunca se cumprem e sobretudo, como dizias, emoções. Que nem se mostram. Por tudo isso, infelizmente, repetirás, insistirás completamente desesperado, e teu único apoio será a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra estarás quem sabe afastando para sempre. Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna absolutamente não verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.
No silêncio que se faria, pensas,
precisarás fazer alguma coisa como colocar um disco ou ensaiar um gesto, mas
talvez não faças nada, pois ele continuará te olhando com seus olhos vazios no
fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o indício mínimo de algum
tesouro escondido para que possas voltar à tona com um sorriso nos lábios e as
mãos repletas de pedras preciosas. Mas nesse silêncio que certamente se fará
talvez acendas mais um cigarro, e com a seca boca cerrada sem nenhum sorriso,
evitarias o mergulho para não correres o risco de encontrar uma fera
adormecida. Teu coração baterá com força, sem que ninguém escute, e por um
momento talvez imagines que poderias soltar os membros e simplesmente tocá-lo,
como se assim conseguisses produzir uma espécie qualquer de encantamento que de
repente iluminaria esta sala com aquela luz que tentas em vão descobrir também
nele, enquanto dentro de ti ela se faz quase tangível de tão clara. Nítida luz
que ele não vê, esse outro sentado a teu lado na sala levemente escurecida,
onde os sons externos mal penetram, como se estivessem os dois presos numa
bolha de ar, de tempo, de espaço, e novamente encherás o cálice com um pouco
mais de vinho para que o líquido descendo por tua garganta trêmula vá ao
encontro dessa claridade que tentas, precário, transformar em palavras
luminosas para oferecer a ele. Que nada diz, e nada dirás, e sem saber por quê
imaginas um extenso corredor escuro onde tateias feito cego, as mãos estendidas
para o vazio, pressentindo o nada que tu mesmo prepararias agora, suicida
meticuloso, através de silêncios mal tecidos e palavras inábeis, pobre coisa
sedente, te feres, exigindo o poço alheio para saciar tua sede indivisível.
Anjos e demônios esvoaçariam coloridos pela sala, mas o
caçador de borboletas permanece parado, olhando para a frente, um cigarro aceso
na mão direita, um cálice de vinho na mão esquerda. A presença do outro
latejaria a teu lado quase sangrando, como se o tivesses apunhalado com tua
emoção não dita. Tuas mãos apoiadas em bengalas mentirosas não conseguiriam
desvencilhar o gesto para romper essa espessa e invisível camada que te separa
dele. Por um momento desejarás então acender a luz, dar uma gargalhada
ridícula, acabar de vez com tudo isso, fácil fingir que tudo estaria bem, que
nunca houve emoções, que não desejas tocá-lo, que o aceitas assim latejando
amigo belo remoto, completamente independente de tua vontade e de todos esses
teus informulados sentimentos. No momento seguinte, tão imediato que nascerá,
gêmeo tardio, quase ao mesmo tempo que o anterior, desejarás depositar o
cálice, apagar o cigarro e estender duas mãos limpas em direção a esse rosto
que sequer te olha, absorvido na contemplação de sua própria paisagem interna.
Mas indiferente à distância dele, quase violento, de repente queres violar com
tua boca ardida de álcool e fumo essa outra boca a teu lado. Desejarás
desvendar palmo a palmo esse corpo que há tanto tempo supões, com essa
linguagem mesmo de história erótica para moças, até que tua língua tenha
rompido todas as barreiras do medo e do nojo, subliterário e impudico
continuas, até que tua boca voraz tenha bebido todos os líquidos, tuas narinas
sugado todos os cheiros e, alquímico, os tenhas transmutado num só, o teu e o dele,
juntos - luz apagada, clichê cinematográfico, peças brancas de roupa cintilando
jogadas ao chão.
E desejá-lo assim, com todos os lugares-comuns do desejo,
a esse outro tão íntimo que às vezes julgas desnecessário dizer alguma coisa,
porque enganado supões que tu e ele vezenquando sejam um só, te encherá o corpo
de uma força nova, como se uma poderosa energia brotasse de algum centro
longínquo, há muito adormecido, todas as princesas de todos os contos de fada
desfilam por tua cabeça, quem sabe dessa luz oculta, e é então que sentes
claramente que ele não é tu e que tu não serás ele, esse ser, o outro, que
mágico ou demoníaco, deliberado ou casual te inflama assim de tolos ardores
juvenis, alucinando tua alma, que o delírio é tanto que até supões ter uma.
Queres pedir a ele que simplesmente sendo, te mantenha nesse atormentado estado
brilhante para que possas iluminá-lo também com teu toque, tua língua terna, a
rija vara de condão de teu desejo. Mas ele nada sabe, nem saberá se
permaneceres assim, temeroso de que uma palavra ou gesto desastrados seriam
capazes de rasgar em pedaços essa trama onde te enleias cada vez mais sem
remédio, emaranhado em ti e tuas ciladas, em tua viva emoção sintética a ponto
de parecer real, emaranhado no desconhecido de dentro dele, o outro - que no
lado oposto do sofá cruza as mãos sobre os joelhos, quase inocente, esperando
atento e educado que de alguma forma termines o que começaste.
Muito mais que com amor ou qualquer outra forma tortuosa
da paixão, será surpreso que o olharás agora, porque ele nada sabe de seu poder
sobre ti, e neste exato momento poderias escolher entre torná-lo ciente de que
dependes dele para que te ilumines ou escureças assim, intensamente, ou quem
sabe orgulhoso negar-lhe o conhecimento desse estranho poder, para que não te
estraçalhe entre as unhas agora calmamente postas em sossego, cruzadas nas
pontas dos dedos sobre os joelhos.
Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos
os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás
insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites
afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas,
consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em
cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em
tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem
descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho
o cheiro preciso dele.
Que não suspeitará da tua perdição, mergulhado
como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes
sequer que lugar ocupas, e nem mesmo se estás nela. Na frente do espelho,
nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de
novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo
dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de
tudo sobre esse possível amargo futuro, sabes também que já não poderias voltar
atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem,
não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser
aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas
sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que
tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não
importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que nesse exato
momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um
trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o
abajur no canto da sala depois de apagar a luz mais forte no alto. E finalmente
começas a falar.
Caio Fernando Abreu in Morangos Mofados
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